Confira entrevista com Lia Wyler, tradutora de Harry Potter
Lia Wyler é hoje a tradutora mais famosa do Brasil. Nos últimos oito anos, foi responsável pela tradução dos sete volumes da série Harry Potter, de J.K. Rowling. O último livro, Harry Potter e as Relíquias da Morte (Rocco), que finaliza as aventuras do bruxo, acaba de ficar pronto e chega às livrarias no dia 10 de novembro. Em seus 40 anos de atividade, Lia traduziu autores consagrados como os americanos John Updike e Henry Miller. Escreveu o livro Línguas, Poetas e Bacharéis e fez vários estudos sobre história da tradução no Brasil. Mas o caldeirão de invenções da britânica J.K. Rowling foi um dos maiores desafios da carreira da tradutora. Lia precisou de uma disciplina rigorosa. Para verter as quase 800 páginas do sétimo livro para o português, Lia desligou-se da internet e viveu em solidão por três meses. Nesta entrevista, fala das dificuldades da tradução, do estilo de J.K. Rowling e do privilégio de ter sido a tradutora dessa saga que entra para a história da literatura infanto-juvenil.
Época – O estilo de J.K. Rowling é fluido, mas cheio de construções sofisticadas. Essa característica está bem preservada na sua tradução da saga de Harry Potter. Como resguardar a alma do autor em uma obra e, ao mesmo tempo, transpô-la para um português que não soe artificial?
Lia Wyler – Quando se trata de literatura culta o leitor brasileiro advoga que a tarefa do tradutor seja procurar reproduzir o estilo do autor. O que acontece, nesta tradução, é que eu tive o mesmo cuidado com uma obra que pertence à esfera da chamada ficção comercial que, para muitos, é um gênero menor. Mas não é. A legibilidade é uma exigência deste gênero; na série Harry Potter essa legibilidade é facilitada pelo excepcional talento da contadora da história. Tornar o texto traduzido fluido, no entanto, não é o tradutor impor o seu estilo pessoal, “domesticar” o texto, distanciando-o de tal forma do original que ele deixe de pertencer à J.K.Rowling. Quanto às construções sofisticadas, elas são perfeitamente traduzíveis para o português, uma língua de extraordinária riqueza a que não faltam palavras para descrever cenários, acontecimentos e diálogos. A artificialidade a que você deve estar se referindo é conseqüência do “tradutês” e do “internetês” linguagens das Trevas introduzidas no Brasil pela falta de senso crítico dos que escrevem.
Época – “Imberbe”, “ofídico”, termos que aparecem no primeiro capítulo de Harry Potter e as Relíquias da Morte, são bonitos e combinam com o universo do bruxo. São também pouco usuais. A esperança é de que os leitores consultem o dicionário?
Lia – Teoricamente, o sétimo livro se destina a jovens de 17 anos, uma idade em que encontramos barbudos e imberbes empenhados em passar no vestibular. Imagino que no início foi intenção da autora desenvolver gradualmente o vocabulário dos seus leitores, os mais novos auxiliados pelos pais, os mais velhos, pela consulta aos dicionários informatizados. Procurei apenas acompanhar o registro da autora em português mantendo intocados os costumes e maneirismos da cultura britânica.
Época – O jovem leitor brasileiro tem um repertório comparável ao de um leitor inglês, por exemplo? Como lidar com isso?
Lia – Não. Na Grã Bretanha a taxa de iletramento é mais baixa. A leitura é incentivada desde a mais tenra idade por razões religiosas – a obrigação de ler a bíblia. O latim continua a ser ensinado, ao contrário do que ocorre no Brasil. Você me pergunta se procuro facilitar a leitura? De certa forma, sim. Os dicionários que mais consulto são o Houaiss e o Aurélio, à procura de alternativas mais inteligíveis para palavras que já caíram em desuso em português. Usei no entanto o verbo boquiabrir-se. Acho que é a tradução mais perfeita para o “gape” da língua inglesa.
Época – Você se tornou uma referência na área de tradução. Diante do grande público, deu cara e voz ao profissional da tradução. Ainda pensa ser “invisível”, como já disse sobre a figura do tradutor?
Lia – Diariamente a vida nos prega peças, e essa é a maior que a vida me pregou. O teórico norte-americano Lawrence Venuti afirmou que o tradutor era invisível no texto. Eu acrescentei: é invisível dentro e fora do texto. Pois bem, tornei-me a tradutora mais visível do Brasil. Mas Venuti também acaba de ser desmentido: com o uso de bancos de dados é possível identificar o tradutor de uma obra por sua escolha de palavras. Isso se chama avanço científico. As afirmações são descartadas à medida que surgem novos dados que as atualizam.
Época – O seu trabalho na série Harry Potter mostrou que a tradução é uma criação literária. Mas o tradutor é considerado um autor, no Brasil?
Lia – O volume de traduções produzido no Brasil sem qualquer salvaguarda para a nossa língua é de tal ordem que as pessoas não acreditam que a tradução seja uma obra de recriação. Um tradutor é perfeitamente substituível por outro mais barato, e pagam-se preços diferenciados em São Paulo e no Rio de Janeiro como se os neurônios fossem mais numerosos e mais ágeis, dependendo da localidade. Felizmente consegui preservar uma parte dos meus.
Época – Pretende continuar com seus estudos sobre teoria e história da tradução?
Lia – Sonho em continuar, mas sem ajuda financeira o meu trabalho se tornaria tão lento que nem sei se vale a pena. A tradução é a atividade que paga as minhas despesas. A pesquisa acarreta mais despesas, que têm de ser pagas pela tradução.
Época – Qual é a grande questão que o tradutor enfrenta hoje, no país?
Lia – A tradução, como qualquer profissão liberal, é segmentada e cada segmento tem especificidades que não permitem afirmar que exista apenas uma grande questão. Explicando melhor: na área de filmes há tradutores para legendas, narração e dublagem de filmes, vídeos e DVDs, que por sua vez são usados em cinema, televisão, escola e empresa, cada uma dessas finalidades exigindo diferentes habilitações do profissional. Qual é a grande questão para cada um desses grupos de tradutores? Não sei, mas se existe uma grande questão, e não será apenas para os tradutores, mas para todos os brasileiros, é a deficiência do ensino do português em todos os níveis.
Época – Você é professora de pós-graduação na área de tradução. É possível ensinar a traduzir? O que alguém interessado em tradução deve ter em mente, antes de se lançar nesse mundo?
Lia – É possível fazer reflexões sobre a arte de traduzir, é possível aprender procedimentos para produzir traduções mais legíveis. Eu mesma dou oficinas particulares para mostrar que é possível enxugar até as melhores traduções publicadas – obviamente na posição de “criticador” e não de fazedor. Para ser tradutor, imagino que seja preciso acreditar que o conhecimento das culturas do país de origem e do nosso são fundamentais. A tradução é uma ponte entre duas culturas, a nossa tarefa é construir essa ponte. Por outro lado, traduzir palavras apenas, já dizia o saudoso poeta e tradutor José Paulo Paes, é tarefa para lexicógrafos.
Época – É possível esboçar a proporção de talento envolvida num trabalho de tradução literária?
Lia – Até hoje ninguém tentou porque não há uma tradução única e genial para um texto estrangeiro. Há variações e coincidências nas traduções feitas por diferentes pessoas que agradam mais a uns e desagradam a outros e isto não significa que cada tradução não apresente rasgos de genialidade que recriem os do autor estrangeiro.
Época – Como tradutora de autores como John Updike e Henry Miller, fica decepcionada por ser reconhecida principalmente por Harry Potter?
Lia – Não. Fico decepcionada com a incompreensão que cerca o ato de traduzir, a falta de percepção do quanto de inventividade empregamos para evitar a repetição de palavras, o exercício que é a reestruturação de frases visando a maior legibilidade do texto e mil outros recursos de que se lança mão, por vezes instintivamente dados os curtos prazos que temos para refletir. Considero o Harry Potter, com a sua multiplicidade de registros – narração, diálogos entre iguais e superiores e inferiores hierárquicos, artigos de jornal, avisos escolares, livros-texto, textos medievais, contos folclóricos, aulas, cartas entre garotos e cartas ministeriais, jogos de palavras – o maior desafio que já enfrentei depois de A Fogueira das Vaidades, de Tom Wolfe.
Época – Quais foram os desafios deste último Harry Potter? Você estacou em alguma palavrinha? Lembra-se de alguma passagem particularmente difícil?
Lia – Houve jogos de palavras desafiadores como o já famoso “abro no fecho”, uma frase necessariamente ambígua para não estragar o suspense. Ou o rock contraposto a roque, uma solução fonética para uma pequena dificuldade. Mas se eu contar tudo não haverá surpresas.
Época – Qual é o encanto de traduzir um livro infanto-juvenil? Quais as especificidades desse trabalho?
Lia – Ser capaz de trazer à luz a criança que existe dentro de todos nós. Imaginar-se sentindo, falando e agindo como cada um dos personagens, imaginar-se má, boa, ressentida, entusiasmada, curiosa, enfim, ser capaz de se colocar no lugar do outro ficcional e produzir um texto tão verossímil quanto o original estrangeiro.
Época – Quais são seus projetos para o futuro?
Lia – Não faço projetos de longo prazo porque estou vivendo o futuro, não o que sonhei quando criança mas um futuro que foi se desdobrando à minha frente a cada opção que fiz. Gostaria, no entanto, de retomar a minha História da Tradução porque há numerosos acontecimentos de grande conseqüência nas três últimas décadas do século XX cujo conhecimento poderia ser útil aos estudiosos da área.
Época – Harry Potter deixará saudades? A sensação de terminar a tradução da saga é de alívio ou de perda? É como você se sente toda vez que termina um trabalho?
Lia – Certamente deixará saudade. Não é todo o dia que um tradutor tem a oportunidade de trabalhar durante oito anos com o mesmo autor. Quanto à sua segunda pergunta não há absolutos, a perda e o alívio são faces da mesma moeda. Quando termino um trabalho normalmente começo outro. Depois de um Harry Potter em 62 dias precisaria de outros 62 de férias.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EDG79809-5856,00.html